Edición Nº58 - Agosto 2022
Ed. Nº58: Shoá, identidade e educação não-formal
Por Juliana Katz
Um dos conceitos mais essencialmente judaicos, originado, na verdade, no nascimento da nossa nação, na saída do Egito, é o de “ וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ – E contarás a teu filho” (Shemot, 13:8). Esses dizeres, reafirmados a cada ano na mesa do Seder de Pessach, garantem o encaixe e o polimento perfeitos de cada novo elo na interminável corrente do nosso povo – a nossa continuidade.
No entanto, é fundamental enfatizar aqui a forma com que esse processo ocorre. Porque se é sabido que as histórias são elemento fundamental na formação da identidade e de um senso de propósito compartilhados pelos membros de um povo, no nosso caso isso acontece de maneira muito peculiar. Inclusive, se voltarmos às nossas mekorot, não encontraremos nenhuma palavra no hebraico bíblico que signifique “história”. Em vez disso, aparecerá o radical זָכוֹר – que significa “memória”. E como disse uma vez o brilhante Rabino-Lorde Jonathan Sacks (Z”L), há uma diferença fundamental entre as duas. Enquanto a história é alheia, ou seja, trata-se de um relato de eventos que aconteceram em algum momento a outra pessoa; a memória, por sua vez, pertence a cada um. Trata-se do passado internalizado e feito parte da sua identidade. Dessa forma, a construção de uma memória pessoal desses acontecimentos – como a própria Mishná nos instrui a fazer ao dizer que «cada pessoa deve ver a si mesma como se tivesse escapado do Egito» – evoca os valores pelos quais lutaram aqueles que nos precederam e dos quais somos guardiões. Ao nos tornarmos uma nação de contadores de histórias, nos transformamos também em um povo intrinsecamente ligado à responsabilidade coletiva – uns para com os outros e para com o passado e o futuro.
Isso, para além de garantir a perpetuação das nossas tradições e o recebimento da minha perífrase preferida para o povo judeu – a de “povo do livro” -, foi essencial para nossa sobrevivência durante o momento mais desprovido de esperança e abastecido de coragem da história recente: a Shoá. A habilidade de não somente contar histórias, mas de estruturar narrativas que gerações sucessivas fariam suas e ensinariam a seus filhos literalmente nos manteve vivos. E, nesse contexto, o papel das tnuot noar e da educação não-formal merece destaque.
A inabalável fé dos jovens chalutzim de que haveria um futuro para o nosso povo em Eretz Israel – pelo qual haviam trabalhado incessantemente nas últimas três décadas desde o surgimento dos movimentos juvenis judaico-sionistas – percorria as batalhas travadas nas ruas dos guetos, as histórias sussurradas nos esconderijos pelos bosques e os sonhos compartilhados nos beliches dos galpões dos campos de concentração. Em seu testemunho no julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, em 1961, Tzivia Lubtekin, membra do Hashomer Hatzair e do grupo de resistência Z.O.B., conta em suas próprias palavras sobre esse sentimento: “Naquela realidade, quando ao nosso redor não havia nada além de destruição e morte, sem uma única centelha de esperança, sem um único sinal de que o rosto humano ainda não havia sido apagado da face da terra, e quando já tínhamos sido despojados da capacidade de sentir e mover, a única força que ainda nos mantinha de pé, nos sustentava, era vocês: Israel, o Yishuv, (…), o lar”.
E foi assim, a partir da sólida certeza de que haveria sim um amanhã e do cristalino entendimento de que dentro de cada criança ardia uma chama moral que, se bem alimentada, poderia derrotar a escuridão no mais profundo da natureza humana que Freddy Hirsch, do Macabi HaTzair, supervisionou o bloco das crianças no campo de Theresienstadt; que Yossef Glazman, do Betar, liderou a resistência no gueto de Vilna; que Frumka Plotnicka, do Dror, contrabandeou comida e armamentos nos guetos pelos quais passou, e que outras centenas de jovens membros de tnuot exatamente assim como eles encorporaram o espírito orgulhoso e valente do novo judeu e permaneceram em seu tafkid (cargo) até o último momento.
E se é verdade que suas vidas tiveram um final cruel e prematuro, o qual continuamos a lamentar porque conforto algum jamais será suficiente, mesmo através de nosso choro somos capazes de ouvir seus sussurros de alento e seus gritos de guerra enquanto lutavam com orgulho e bravura pelo direito de ser(mos) judeus – ali e para sempre. Cada uma de suas particulares histórias encerra em si o que há de mais universal, princípios justificados por suas nobres intenções na mesma medida que por suas concretizadas consequências: a esperança milenar de ser um povo livre em nossa terra.
Porque suas eternizadas atuações heróicas nos inspiram a lutar contra o antissemitismo sempre que ele tentar erguer sua cabeça, nos inspiram a combater a ignorância sempre que ela buscar apagar a mínima chama de discernimento, nos inspiram a enfrentar a pobreza e a injustiça e a educar nossos filhos sobre a herança e a beleza da nossa fé – porque um judeu não poderia fazer menos. Porque os princípios encarnados nos heróis da Shoá servem de tocha ao mundo para que haja sempre um exemplo a ser imitado quando nos perguntarmos: “do que deve consistir um ser humano, e, mais do que isso, um judeu?” Porque sua resposta ao pior crime já cometido contra um povo foi revitalizar sua terra, recuperar sua soberania, resgatar seus irmãos ameaçados em todo o mundo, reconstruir Jerusalém e se provar tão corajosos na busca da paz quanto na defesa de si mesmos.
Disso tudo sabiam eles próprios, conscientes de que morreriam para que vivêssemos, de que a brevidade de suas vidas seria matéria para a pavimentação da mais honrosa eternidade; atestada nas perenes palavras de Pawel Frankel, líder da ala revisionista da resistência que levou a cabo o levante no Gueto de Varsóvia: “No futuro, as crianças de Eretz Israel aprenderão sobre nós e, para eles, nós seremos um exemplo de bravura e coragem. A maioria de nós morrerá em batalha, mas viveremos nas vidas e corações das gerações que estão por vir. Viveremos enquanto a história dos judeus continuar a viver.”
E precisamente no significado de suas palavras reside a que será a maior responsabilidade da geração atual: por sermos os últimos a ouvir os relatos [da boca] dos próprios sobreviventes, não nos sobrará outra opção que não a de tornar suas histórias, as nossas. Nossas histórias, nossas memórias. Porque seus fragmentos, um a um, yad va’shem, quando devidamente registrados em nosso imaginário coletivo, ajudarão a nos tornar quem somos. Porque se há culturas que esquecem o passado e há culturas que se mantêm presas por ele – nós não fazemos nenhum dos dois. Nós carregamos o passado conosco como levaremos a memória da Shoá conosco, enquanto o povo judeu existir, como Moshé Rabeinu carregou os ossos de Yossef, como os levitas carregaram os fragmentos das Luchot Habrit quebradas e como as novas paredes de Jerusalém foram reconstruídas, uma e outra vez, a partir dos escombros das anteriores. Essa, então, é a nossa história – nosso legado para a próxima geração.
Juliana Katz nasceu em Porto Alegre, no sul do Brasil, como a mais nova entre 8 irmãos. Além da tradicional educação judaica que recebeu na escola, desde os 6 anos, frequentou o Movimento Juvenil Sionista Betar, onde desenvolveu sua identidade judaica e sua crença na educação não-formal como agente vital da continuidade judaica. Desde 2021, cursa Filosofia na Academia Atlântico.