Coloquio

Edición Nº59 - Diciembre 2022

Ed. Nº59: Eichmann aos olhos de Arendt: distanciamento e divagações historiográficas

Por Sofia Débora Levy

Postado originalmente em Arquivo Maaravi V.13 N.25 (2019)

 

A morte de Rafi Eitan no dia 23 de março de 2019, aos 92 anos, em Tel Aviv, Israel, nos remete a um episódio no qual sua atuação foi notória: a prisão de Adolf Eichmann, líder nazista responsável pelas deportações de milhões de judeus da Europa para os campos de concentração e extermínio. Tendo ingressado no Mossad, o serviço secreto israelense, em 1950, Eitan chegou à chefia de operações da agência. Foi ele quem comandou, em 1960, a operação de captura de Eichmann em Buenos Aires, na Argentina, e de seu transporte até Israel, onde, no ano seguinte, o criminoso nazista foi julgado e executado.

O famoso julgamento foi coberto por repórteres do mundo inteiro, tendo obtido notório destaque as notas de Hannah Arendt, depois publicadas em seu livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, em 1963. A partir da cobertura do julgamento, Arendt observou que, onde muitos esperavam ver um homem monstruoso pelo genocídio no qual havia tomado parte significativa, Eichmann mostrava-se, em sua indiferença, um homem comum, e não um insano. Isso a levou a postular uma questão maior, de como o mal pode ser banalizado dentro de um sistema altamente burocrático, punitivo, militarizado, no qual o réu em questão, e inúmeros outros implicados, estariam apenas cumprindo as ordens mandadas a todos os integrantes da gigantesca máquina nazista.

 

Durante o julgamento, Eichmann chega a dizer que não se sentia culpado e seu papel na Solução Final foi um acidente e, ainda, que não era antissemita e não odiava os judeus – conforme registrou Arendt.1 Sobre essas e outras de suas afirmativas, a nosso ver falseadoras da realidade, sobretudo frente ao cargo de chefia que Eichmann ocupava na política de segurança do Estado nazista, desenvolvemos esta reflexão, cotejando as palavras do réu, dos testemunhos que o desmentem por terem, de perto, visto suas empenhadas atuações nas deportações de milhares de judeus, e as de Hannah Arendt, analisando o quanto, ao buscar uma reflexão acerca de um mal maior, a filósofa acabou por minorar as considerações de Eichmann sobre a sua responsabilidade pessoal no Holocausto. A tendência da filósofa em incrementar reflexões teóricas apesar dos dados de realidade levou a inúmeras críticas na época e persistem nos dias de hoje.

 

Hannah Arendt

 

A filósofa judia Hannah Arendt nasceu em Linden, na Alemanha, no dia 14 de outubro de 1906 e morreu no dia 04 de dezembro de 1975, em Nova York, Estados Unidos. Durante sua formação acadêmica, foi aluna de Martin Heidegger, Edmund Husserl e Karl Jaspers – formou-se em 1928 sob a tutoria deste último, com quem manteve boas relações até o fim da vida.

 

Com a ascensão de Hitler, a filósofa, escritora, ativista feminista, sionista e opositora do nacional-socialismo, Arendt é presa em julho de 1933, ficando por oito dias em poder da Gestapo – a polícia secreta do Estado nazista. Ela rompe amizades com Martin Heidegger e outros pensadores que se filiaram ao Partido Nacional-Socialista e decide sair da Alemanha. Primeiramente, foi para Praga e Genebra e, depois, para Paris, onde permanece por seis anos. Em 1937, a Alemanha retira a sua nacionalidade, tornando-se apátrida. Em 1940, sob o governo colaboracionista de Vichy, foi presa sob a alegação de ser “estrangeira suspeita” e confinada no campo de concentração de Gurs, na França. Arendt conseguiu arranjar papéis para sua liberação e escapar desse campo. Em janeiro de 1941, ela e o marido Heinrich Blücher, fugiram via Espanha, para Lisboa, em Portugal. Em maio de 1941, conseguiram passagens para Nova York e chegaram aos Estados Unidos. Mas, apenas em 1951 ela consegue a cidadania norte-americana, onde fez a sua carreira acadêmica.

 

Em abril de 1961, Arendt foi enviada como correspondente da revista norte-americana The New Yorker para cobrir, em Jerusalém, o julgamento do Tenente-Coronel Adolf Eichmann, Chefe da Seção de Assuntos Judaicos no Departamento de Segurança de Adolf Hitler. Como tal, Eichmann foi responsável pelas deportações dos judeus da Europa para os campos de concentração e extermínio nazistas. Ao invés de um homem monstruoso, nazista fanático, como esperado por muitas pessoas, Eichmann se apresentou, em seu julgamento, como um homem impassível, burocrata, e que apenas repetia que tudo o que fez durante o período nazista foi cumprir ordens e dar encaminhamentos burocráticos.

 

Arendt viu em Eichmann um homem indiferente, com ausência de pensamento. A partir daí, desenvolveu um questionamento acerca da possibilidade de se praticar o mal sem quaisquer motivos, interesse ou vontade em particular. No entanto, questionamos: na medida em que Eichmann era partidário da ideologia nazista, como não considerá-la como seu fator motivacional? E, subjacente a ela, outras posturas preconceituosas, valorativas e mesmo emocionais que também contribuem para a motivação e dedicação à causa por ele abraçada?

 

As motivações antissemitas negadas por Eichmann durante o seu julgamento não condizem com suas declarações nos primeiros anos de sua adesão ao partido nazista, em 1927 quando, mobilizado pelos discursos de Hitler, reviu suas impressões dos judeus austríacos com os quais havia até então convivido:

 

“After hearing the F. speak I felt a loathing of myself that I had mixed with those Jews who were enemies of the German people and who defiled our blood. I felt a certain change in my outlook coming over me. I began to think these foreign-looking people were, indeed, the enemy of us all. They all seemed to be traders and financiers, people willing to take very little part in the real work of community, people who insisted our ways had nothing to do with them. It seemed wrong that they should try to cut themselves off, to keep together when they should be sharing our fate with us. I wondered about my friendship with Jews and I felt that they had always treated me as someone rather inferior. I felt that no country, unassisted by others, could have beaten the German army during the war. O believed that Hitler was right when he said that one people had intrigued to link as many nations as possible against our country and bring about the terrible times we were then going through.” (Levin)

 

Apesar de sua vinculação voluntária, a partir de motivações pessoais e coletivas, em seu julgamento, Eichmann alegou que apenas cumpria ordens, sem maiores questionamentos ou reflexões, e que qualquer outra pessoa no seu lugar teria agido da mesma forma. Tal obediência cega colocou esse líder nazista, e inúmeros subordinados, na condição do cumprimento de leis e ordens a eles impostas pelo totalitarismo hitlerista – que punia a desobediência severamente, inclusive com a morte. Diante dessas ameaças, não refletir, não pensar crítica e autonomamente, não questionar nem discordar do sistema foram as defesas encontradas para viver sob o regime nazista sem se sentir culpado pelos atos cruéis de exclusão, agressão e extermínio de milhões de seres humanos. E, ao contrário, cobrando dos partidários uma mesma postura rígida e filiada diante da qual, ao menor vacilo, evoluía-se da desconfiança para a certeza de traição, passível de morte.

 

Agindo assim, sem questioná-las e simplesmente obedecendo a ordens, as pessoas se acostumam a não tomar decisões, a não assumir as consequências de suas tomadas de posições e de suas ações dela decorrentes. Nesse caso, a responsabilidade e a culpa são atribuídas a outrem ou às circunstâncias, levando a que o mal se espraie numa anomia social.

 

Considerando-se uma tal dinâmica, Arendt viu em Eichmann um homem indiferente, com ausência de pensamento. A partir daí, a filósofa desenvolveu um questionamento acerca da possibilidade de se praticar o mal sem quaisquer motivos, interesse ou vontade em particular. No entanto, Eichmann era partidário da ideologia nazista. Logo, esta seria sua grande motivação, a qual açambarcava junto sensação de poder, orgulho, liderança, com olhar reificado sobre os seres humanos frente aos quais tinha uma colocação superior. Como afirma Helmut Galle, os nazistas exerciam a violência em nome de uma vontade superior, à qual deveriam obedecer suprimindo conscientemente a empatia bem como o prazer no sofrimento do outro e até mesmo no próprio poder, que estaria apenas a serviço da ideologia e do seu líder supremo. Ora, a partir dessa reflexão, Eichmann sentia-se, de fato, superior às suas vítimas execradas e buscava atender aos parâmetros ideológicos nazistas e seus deveres com anständig geblieben “uma mistura correta em situações públicas e uma integridade interna operante à própria consciência”.

 

Diante dessa compreensão sobre a formação ideativa dos partidários nazistas, questionamos se é possível seguir uma linha de raciocínio considerando como expressão sincera um jogo de defesa mantido e representado pelo réu que, ao ser levado para julgamento, já sabia certa a sua condenação?

 

A interpretação de Arendt acerca de Eichmann como um homem desprovido de motivações próprias frente aos crimes que cometeu, ainda que a partir de atividades burocráticas, gerou muita controvérsia. Isso porque, em vez de se ater apenas à análise do réu, a partir do comportamento demonstrado por Eichman, ela indicou a banalidade do mal, que transcendia o próprio indivíduo, posto que estava presente em todo o regime nazista. Essa análise dava a entender uma retirada da responsabilidade de Eichmann sobre suas ações, na medida em que ele estaria apenas cumprindo ordens e, como tal, sendo uma peça de uma grande engrenagem – um mal maior. A culpa, nesse caso, não recairia sobre o indivíduo, mas sobre todo o sistema burocratizado, hierarquizado, militarizado e aterrorizante, incitador das relações de indiferença no trato com os grupos humanos considerados como raça inferior à raça pura ariana, bem como no trato entre os adeptos ao regime, em suas regras de conduta de obediência cega às normas ditadas e impostas pelo líder, o Führer.

 

No entanto, o sistema não é um organismo em si, mas constituído por pessoas, às quais cabem as responsabilidades por suas ações e escolhas.

 

Arendt interpretou o comportamento de Eichmann durante o seu julgamento como o de um homem que era incapaz de pensar e julgar, produto de um sistema que banalizou o mal. Não tomou esse comportamento impassível ali demonstrado como uma defesa com a qual o réu se revestiu para atravessar um julgamento no qual já se sabia condenado a priori – outra crítica feita por Arendt à estrutura do julgamento, segundo ela montado como um espetáculo com o réu preso numa jaula de vidro. Daí terem se insurgido contra ela tantas vozes críticas, sobretudo da comunidade judaica, de que ela estaria eximindo Eichmann de sua responsabilidade por ter arquitetado o extermínio de milhões de seres humanos – pois, como ele mesmo alegou, “nunca chegara a dar um tiro num judeu”.

 

Uma das questões críticas assinaladas por Arendt (1983) quanto ao julgamento de Eichmann foi: como julgar como crime ações executadas por obediência à lei vigente no III Reich? Ou seja, como configurar um crime – de proporções inomináveis de lesa humanidade – mas que no contexto em questão não se configurava como tal, ao contrário, era absolutamente fiel à lei sócio-histórico? Além dessa questão, ela assinalou outras acerca da forma com que o julgamento de Eichmann em Jerusalém foi conduzido. Suas colocações geraram fortes reações por pare da comunidade judaica mundial, pois davam a entender quase que uma defesa do réu. Dentre essas questões, destacamos a crítica de Arendt à que o júri não foi composto por um tribunal internacional, mas pela justiça israelense; e a questão de que, para que um criminoso seja condenado, há que se reconhecer nela a intenção de cometer o crime. No caso de Eichmann, ele reafirmou que não nutria nenhum assentimento antissemita, e estava apenas a cumprir suas tarefas, e que não sabia o que, de fato, estava acontecendo com os judeus. Essa fala, no entanto, foi contraposta com provas, por exemplo, de documentos assinados pelo próprio Eichmann referente a deportações de milhares de judeus. Nessas deportações, ele sabia das parcas condições às quais os deportados eram submetidos, com seus poucos pertences que lhes seriam logo arrancados. Se Eichmann sabia das deportações, sabia que os deportados haviam sido levados a largar suas casas, seus trabalhos e seus pertences para trás. Como poderia Eichmann não saber do que havia se passado e do que iriam passar os deportados, antes e depois do seu embarque, muitos deles supervisionados pessoalmente por ele?

 

Consideramos o processo de exclusão social e a apropriação legalizada de todos os bens e propriedades de judeus como um grande roubo institucionalizado pelos nazistas em todos os países sob seu domínio. Esse roubo acontecia também no âmbito das evacuações e deportações dos judeus, ações estas chefiadas por Adolf Eichmann – mais uma vez, como poderia ele não saber do que acontecia a essa população-alvo? Logo ele que, pessoalmente supervisionou várias deportações, sobretudo na Hungria, em 1944, com artifícios de manipulação de informações e mentiras veiculadas para os incautos, como nos diz Primo Levi:

 

“Constante era o conselho hipócrita (ou a ordem) de levar tudo quanto era possível: especialmente o ouro, as joias, as moedas fortes, as peles, em alguns casos (certas deportações de judeus camponeses da Hungria e da Eslováquia) até os animais pequenos. “É tudo coisa que poderá servir a vocês” – dizia entredentes e com ar cúmplice o pessoal de acompanhamento. De fato, era um saque: um artifício simples e engenhoso para transferir valores para o Reich, sem publicidade nem complicações burocráticas, sem transportes especiais nem temores de furtos enroute: com efeito, na chegada tudo era sequestrado.” (Levi)

 

As deportações dos judeus da Hungria ocorreram sob as ordens de Eichmann, as quais contrariaram as diretrizes que Himmler lhe havia transmitido, haja vista já antever os sinais da derrota da Alemanha. Himmler preferia negociar com os representantes da comunidade judaica húngara, trocando vidas judias por bens materiais em nome do proveito da Alemanha – mas, talvez, também para benefício próprio, haja vista as indicações para suceder ao Führer, aventada por líderes nazistas a partir de sinais indicativos de doença grave em Hitler – sífilis ou Parkinson. No entanto, Eichmann, preferiu seguir aplicando a Solução Final aos judeus, mantendo a sua fidelidade ideológica às diretrizes do Führer de não tirar proveito em suas ações. Com isso, cuidou pessoalmente das deportações dos judeus da Hungria diretamente para os campos de extermínio.

 

Testemunhos

 

Elie Wiesel

 

Prêmio Nobel da Paz, Elie Wiesel, judeu romeno nascido no dia 30 de setembro de 1928, na pequena cidade de Sighet, na Transilvânia – região de disputas territoriais entre a Romênia e a Hungria desde o século XIX –, hoje pertencente à Romênia. Mas, na primavera de 1944, quando de lá fora deportado, a cidade pertencia à Hungria. Em 19 de março de 1944, a Alemanha ocupou a Hungria e Adolf Eichmann logo iniciou as ações de exclusão social e deportação dos judeus – em abril, foram confinados em guetos e em 15 de maio começaram as deportações. Cerca de 3.000 judeus húngaros, inclusive e Sighet, eram diariamente amontoados em vagões de gado e levados para Auschwitz-Birkenau, onde 95% deles foram assassinados. “Quando levavam os judeus para a estação ferroviária, para os transportes, a fila dava a volta em toda a praça. Quando os policiais estabeleceram o itinerário, seguiram as instruções de um certo Adolf Eichmann, que viera pessoalmente fiscalizar a operação”.

 

Mas, mesmo com essa e outras inúmeras participações presenciais, condizentes com o seu papel de chefia na Gestapo para assuntos referentes aos judeus e às deportações, Eichmann afirmou não ser antissemita, apesar de responsável pelos transportes para o extermínio dos judeus. Wiesel pondera que tal postura espelha a visão já internalizada dos judeus como objetos, números, pragas, e não como pessoas, e que, assim, não cabe ódio frente a objetos. Diz Wiesel: “não se odeiam números”. No entanto, entendemos que, dependendo das referências às quais os números estão a representar, podem, sim, ser alvo de ódio e outras reações anímicas. Entendemos que Wiesel queira destacar a naturalização com que a morte era tratada no Terceiro Reich, bem como todo o processo atrelado ao extermínio e à covarde rivalidade imposta pelos “arianos” sobre outros grupos étnicos. Nesse sentido, encontraríamos novamente o mal banalizado, aludido por Arendt. Mas, ainda assim, reafirmamos que a indiferença é uma manifestação humana e, como tal, deve ser denunciada como uma das forças propulsoras da destrutividade humana.

 

Contra a indiferença e a destrutividade, necessária se faz a indignação. Mas, nos alerta Theodor Adorno, “a indignação com as crueldades torna-se tão menor quanto menos semelhantes aos leitores normais são as vítimas”. Diante de um animal agonizando, os homens respondem com o descaso, por se tratar apenas de um animal; e assim repetem entre si para se convencerem de suas vítimas humanas reificadas – não são humanas, já estão distanciadas do olhar de seus supostos semelhantes.

 

É o olhar reificador que precisa, portanto, ser modificado. Atravessar a gélida distância com que o preconceito, a ideação deformadora do outro, do diferente, contribuíram para aumentar a indiferença e, com ela, promover a destrutividade, passiva ou ativamente.

 

Hansi Brand

 

Nascida Hajnalka Hartmann em 1912, em Budapeste, Hansi Brand foi uma importante judia ativista na resistência ao Holocausto, na Hungria. Em 1935, a jovem sionista se casou com Joel Brand, e ambos procuravam ajudar os judeus refugiados da Áustria e outros países. Em 1942, Hansi e Joel, com Rezsö Kasztner e Samuel Springmann fundaram o Comitê de Socorro e Resgate, procurando contrabandear judeus para a Hungria, providenciando documentos falsos para resgatar refugiados da Polônia e da Eslováquia. Depois de 1944, quando a Alemanha invadiu a Hungria, essas mesmas táticas foram utilizadas para resgatar judeus húngaros. O Comitê negociava, inclusive, com a SS, e em especial com Eichmann, com vias a salvar judeus das deportações. A tentativa de acordo conhecida como “sangue por mercadorias” (“Blood for Goods”) se propunha a trocar um milhão de judeus milhares de caminhões, toneladas de alimentos, e milhões de caixas de sabão. Para tanto, Eichmann autorizou Joel a viajar para a Turquia, para apresentar a proposta à Agência Judaica local; mas Joel foi preso pelo governo britânico em Alepo e a negociação fracassou.

 

Hansi e Kasztner tornaram-se, então líderes do Comitê. Hansi se tornou o elo de ligação entre Eichmann e os judeus, e Kasztner negociou com Eichmann, comprando com dinheiro, ouro e diamantes o salvo-conduto de 1.685 judeus para a Suíça – conforme ficou conhecido o “trem de Kasztner” que partiu de Budapeste no dia 30 de junho de 1944. Hansi e seus dois filhos não embarcaram no trem, e ela continuou a trabalhar no salvamento de judeus, tendo conseguido impedir 15.000 de serem deportados. Em janeiro de 1945, Hansi se escondeu com os filhos na casa de uma família cristã, até a libertação da região pelos russos. Depois da guerra, Hansi veio a testemunhar nos julgamentos de Rezsö Kasztner e Adolf Eichmann, causando grande impacto pelas evidências que relatou sobre as ações de Eichmann diretamente no trato acerca do destino dos judeus – e a que preço.

 

Laurent Stern

 

O sobrevivente do Holocausto Laurent Stern, Professor de Filosofia na Rutgers University, nasceu em Budapeste, na Hungria, numa família judia ortodoxa. Tendo sido deportado, em 30 de junho de 1944, com seus familiares, ficou confinado no campo de concentração de Bergen-Belsen de julho a dezembro de 1944. Em seu relato, Stern busca responder a questões tais como “quem tinha conhecimento de Auschwitz” e “desde quando o tinha”?  Ele conta que Eichmann e seus assistentes chegaram a Budapeste no dia 19 de maio de 1944 para organizar as deportações dos judeus daquela localidade e adjacências. Logo entraram em contato com o Vaad Hatzalah, organização de ajuda aos judeus dirigida pelo advogado e ativista sionista Rezsö Kasztner, bem como com Joel Brand, que organizava fugas para os judeus da Hungria após a ocupação. Os oficiais da SS que trabalhavam com Eichmann – Kurt Becher, Hermann Krumey e Dieter Wisliceny – tiveram um papel importante nas negociações a partir desses contatos, mas coube a palavra final de Eichmann, o único a permanecer favorável às deportações, mesmo depois do dia 7 de julho, quando o regente da Hungria, Miklós Horthy quis acabar com elas.

 

Diante dessa decisão, com a ciência de Eichmann e de Himmler, Becher, Krumey e Wisliceny propuseram um acordo com a organização de Rezsö Kasztner: enviariam judeus para países neutros em troca de caminhões, na proporção de cem mil judeus para mil caminhões, e de um linhão de judeus para dez mil caminhões. Além de enriquecer, os oficiais talvez esperassem uma liberação de suas responsabilidades depois da guerra – pois àquela altura já sabiam que o fim estava próximo. De fato, após a guerra, Becher e Krumey escaparam às sanções nos processos criminais contra os nazistas (Wisliceny foi enforcado na Tchecoslováquia) e Becher enriqueceu a ponto de se tornar a pessoa mais rica da Alemanha em 1960.

 

Laurent Stern e sua família foram deportados no dia 30 de junho de 1944. Enquanto aguardavam o trem na plataforma, um funcionário da estrada de ferro perguntou porque as crianças brincavam? Acaso eles não sabiam que iriam para Auschwitz? De fato, o trem de carga no qual foram embarcadas 1.684 pessoas, entre elas Laurent e sua família, os levou a Bergen-Belsen. No entanto, o funcionário da estrada de ferro, bem como os deportados, já tinha ouvido falar de Auschwitz e das câmaras de gás.

 

Por fim, durante o Julgamento de Nuremberg, Dieter Wisliceny deu o seu testemunho detalhado do seu encontro com Eichmann em Berlim em meados de 1942, quando lhe mostrou a ordem escrita e assinada por Himmler, afirmando que todos os judeus deveriam ser exterminados, conforme decisão do Führer:

 

“The order was signed by Himmler and was dated some time in April 1942. Eichmann told me that the words “final solution” meant the biological extermination of the Jewish race, but that for the time being able-bodied Jews were to be spared and employed in industry to meet current requirements. I was so much impressed with this document which gave Eichmann authority to kill millions of people that I said at the time, “May God forbid that our enemies should ever do anything similar to the German people.” He replied, “Don’t be sentimental – this is a Führer order.” I realized at the time that the order was a death warrant for millions of people and that the power to execute this order was in Eichmann’s hands subject to approval of Heydrich and later Kaltenbrunner. The program of extermination was already under way and continued until late 1944…”

 

Diante desses testemunhos de vítimas e algozes, como sustentar a suposição de que Eichmann não o soubesse do destino dos judeus, conforme argumentou em sua defesa?

 

Críticas à Hannah Arendt

Raul Hilberg, consagrado pesquisador da temática do Holocausto por sua acuidade, nem sempre teve esse reconhecimento. Em 1958, o Yad Vashem, Centro Mundial de Memória do Holocausto, localizado em Jerusalém, Israel, negou apoio à publicação do seu livro A destruição dos judeus europeus. Em 1959, tendo enviado o manuscrito para a editora da Princeton University, recebeu resposta negativa para publicação. Anos depois, encontrou uma correspondência dos editores na qual constava que a negativa se deu após a apreciação de Hannah Arendt, na condição de avaliadora.

 

Após a prisão de Eichmann, em 1960, o Yad Vashem ficou responsável pela constituição das provas para o processo que levaria ao seu julgamento – no entanto, não solicitou a colaboração de Hilberg para a essa preparação. Após inúmeras dificuldades, ele conseguiu publicar sua obra capital no ano de 1961. Apesar da primeira avaliação negativa, e das críticas que manteve ao primeiro capítulo da obra de Hilberg, sobre a história da Alemanha, no pós-escrito da segunda edição de Eichmann em Jerusalém, em 1964, Arendt diz ter se apoiado na obra de Hilberg como uma de suas fontes de pesquisa para o seu livro, a qual ela considera como fidedigna:

 

“Como se pode ver pelo texto, usei o livro The Final Solution de Gerald Reitlinger, e confiei, ainda mais, em Raul Hilberg, na sua obra The Destruction of European Jews, que apareceu depois do julgamento e constitui a narrativa mais completa e fartamente complementada da política judaica do Terceiro Reich.” (Arendt)

 

Em La politique de la mémoire, Raul Hilberg (1996) evidencia incoerências de Hannah Arendt – como a do parecer acerca de sua obra capital – e tece inúmeras críticas à filósofa e suas obras. Para Hilberg, as Origens do Totalitarismo, outra consagrada obra de Arendt, é uma composição de ensaios sem originalidade sobre o antissemitismo, imperialismo e temas como as massas, a propaganda e a dominação total, ligados ao totalitarismo. Desse trabalho, destaca que Arendt isola as fontes históricas do antissemitismo no nazismo, que Hilberg apresenta no primeiro capítulo de A destruição dos judeus europeus, remontando à igreja católica e aos escritos de Lutero, da igreja protestante. Esse isolamento e diferenciação indicados por Hilberg tomamos como exemplo ilustrativo da tendência do pensamento arendtiano a teorizações afastadas das particularidades históricas de seu objeto de estudo.

 

Desse modo, também pelo pensamento marxista, que traz as categorias de capital e o trabalho como norteadoras das análises sociais, podemos vislumbrar a tendência de Arendt a abstrações. Em suas pesquisas acadêmicas, o historiador André Alvarenga procura demonstrar a distância que há entre as reflexões teóricas e a realidade sócio-histórica sobre a qual Arendt, ao tecer suas análises, “produz uma racionalidade autossustentável, uma teoria antecipada aos fatos […] uma filosofia idealista, hermeneuta, circunscrita em estruturas puramente mentais”.

 

Arendt se distancia da lógica do capital como fio condutor da análise social na modernidade, gerando hiatos entre suas teorias e a prática social, segundo o olhar marxiano. Em contraposição aos hiatos notados nas reflexões de Arendt, Alvarenga remete ao procedimento analítico da ontologia histórico-imanente – elaborado por Karl Marx, retomado por Georg Lukács e, posteriormente, por José Chasin – “sem o qual é impossível formular corretamente algum problema autenticamente ontológico da realidade”. A análise imanente propõe o exame interno do objeto de estudo em questão, ou seja, visa apreender o objeto em conformidade com seus aspectos essenciais, ontológicos, e em suas relações com a realidade circundante – sem abrir mão de correlacionar dados concretos do contexto sócio-histórico que influenciam e norteiam essas interações. Diferente das análises hermenêuticas, a crítica ontológica busca apreender a lógica interna do objeto, considerando a sua estrutura. Ao descrevê-lo, dele se aproxima, em vez de teorizar sobre ele à distância, ideativa e idealmente. Desse modo:

 

“Com tal análise, ao pensar a presença histórica e a estrutura de um objeto, descarta-se todo tipo de postura especulativa, adotando em exame a própria matéria pensada. Desta forma, a análise imanente descarta como ponto de partida um crivo metodológico predisposto, como têm, por exemplo, as filosofias que buscam encaixar o objeto em tipos ideais previamente estabelecidos. Com isso, a perspectiva da análise imanente evita uma lacuna analítica e busca responder problemas concretamente colocados na realidade.” (Alvarenga)

 

Segundo Alvarenga, o conceito de banalidade do mal criado por Arendt para explicar o comportamento de Eichmann em seu julgamento nada mais é do que um subterfúgio ideológico que serve como um anteparo para desviar do fato de que Eichmann é um funcionário absolutamente consciente do seu serviço no regime nazista, que tinha como sua principal meta o desenvolvimento do capitalismo na Alemanha, incorporada tardiamente à corrida imperialista iniciada no século XIX. Logo, haveria no discurso arendtiano um protecionismo velado do binômio capitalismo-liberdade. E ainda, a banalidade do mal seria uma proposição de um tipo ideal de compreensão da realidade social, explicativa do produto do sistema nazista e passível de incidir sobre outros períodos históricos com estruturas afins. No entanto, a isenção da responsabilidade individual, concreta, no regime é colocada entre parênteses em prol dessa problematização maior, que se torna uma abstração.

 

Por outro viés, considerando as relações parte-todo, também Hilberg questiona a tese de Arendt sobre a banalidade do mal que ela usou para explicar Eichmann e outros SS. A seu ver, ao estender essa análise a uma condição coletiva, Arendt não discerniu a extensão do trabalho que Eichmann executou com uma pequena equipe, controlando e manipulando os conselhos judaicos, apoderando-se dos bens de judeus, redigindo leis antijudaicas, além de organizar as deportações para os campos de morte. Ela não atentou para as condições dentro do sistema das quais Eichmann se valeu para implementar suas ações sem precedentes: “Elle ne comprit pas les dimensions de ce qu’il avait accompli. Il n’y avait aucune “banalité” dans ce “mal”. A consciência e retidão de Eichmann no cumprimento dos intentos genocidas com os quais coadunava não podem ser naturalizadas nem sublimadas.

 

Outro exemplo da desconexão de raízes históricas nas análises de Arendt é indicado por Hilberg quando, apesar de também ter criticado os Judenrat (Conselho ou Comitê Judaico) por terem seguido ordens, se diferencia da filósofa quanto ao entendimento do papel do Judenrat para a comunidade judaica e para os nazistas. Enquanto Arendt responsabiliza os membros do Judenrat pelo número de judeus mortos – organização comunitária sem a qual, em sua opinião, o número de vítimas seria menor -, Hilberg, em suas análises, retoma o papel histórico dos Conselhos Judaicos nas adaptações sociais da comunidade judaica ao longo dos séculos. Trata-se de uma forma de organização social para a própria comunidade cuja proposição e atuação não pode ser reduzida apenas ao período nazista, nem somente em função dele. E ainda, em conformidade com as afirmações de Benzion Dinur, Presidente do Yad Vashem em 1957, Hilberg não diferencia os líderes judeus e membros do Judenrat do restante da comunidade judaica enquanto vítimas da violência nazista.

 

Não há uma uniformidade no comportamento dos membros dos inúmeros Judenrat, constituídos nas cidades de ocupação nazista. Houve aqueles que tiraram proveito próprio de sua posição, por vaidade ou orgulho, como o caso de Chaim Mordechaj Rumkowski, chefe do Judenrat no gueto de Lodz. Mas, muitas vezes, os próprios líderes também seguiram para as deportações, enganados pelas manipulações de informação feitas pelos nazistas; outras, ao tomarem plena ciência dessa fatal realidade, para não compactuarem, seguiram com os demais deportados ou suicidaram-se – como os membros do Judenrat de Byaroza, na Bielorússia, em 14 de outubro de 1942. Outros, ainda foram mortos pelos nazistas por terem se recusado a colaborar, como Joseph Parnas, primeiro líder do Judenrat no gueto de Lwow, na Polônia, de julho a outubro de 1941. Inúmeros outros líderes judeus tiveram o mesmo fim que Parnas. Ao fim, todos foram desenganados e mandados para os campos de extermínio. Note-se, portanto, a manipulação perversa que, sob poderio armado e aterrorizante, o sistema nazista, em proveito próprio, engendrou junto às organizações judaicas, colocando-as paradoxalmente no papel de vítimas mas buscando colocá-las como cúmplices de seus crimes, conforme também ressalta Primo Levi (1990) quanto à zona cinzenta, referindo-se às condições ambivalentes dos prisioneiros-funcionários judeus nos campos de concentração e extermínio, como os capos e os membros do Sonderkommando – comandos especiais formados por prisioneiros judeus encarregados de retirar as corpos das câmaras de gás para os crematórios.

 

Ressaltando a complexidade das análises das perversas condições paradoxais impostas pelo regime nazista na implementação do Holocausto, voltamos às críticas no caso de Eichmann. Ao tomá-lo como um exemplo do simples burocrata a serviço do sistema, Arendt intenta demonstrá-lo como parte de um mal banalizado numa sociedade onde reina a anomia. Mas, com isso, a filósofa cunha um ideal analítico e acaba por reforçar a anomia, ao invés de reforçar o papel de todo e cada indivíduo atuante na constituição e aplicação das leis, da hierarquia e da burocracia instituídas socialmente. Ou seja, se afasta do real ao falar dele, dando um caráter organísmico ao sistema, como se a essa entidade abstrata coubesse a responsabilidade pelos atos engendrados pelos homens que compõem a sociedade. Reforça-se, assim, a escusa alegada por Eichmann e outros integrantes do partido nazista ao explicarem-se que apenas estavam cumprindo ordens.

 

Não podemos ter certeza do que Eichmann sentiu nem se ele sentiu algum remorso. Mas tão pouco podemos afirmar com certeza que ele não sentiu remorsos algum, como diz Arendt “este novo tipo de criminoso, que na realidade é hostis generis humani, comete seus crimes sob circunstâncias tais, que se torna quase impossível, para ele, saber ou sentir que está agindo mal”. Eichmann sabia que estava agindo mal. Sua frieza era fruto de uma inteligência desenvolvida durante anos para se defender dos clamores de humanidade pelos quais ele sabia que viria a ser acusado.

 

Considerações finais

 

Entendemos que Hannah Arendt quisesse contribuir para reflexões amplas acerca da convivência social, para além de um caso isolado. Mas, em se tratado do julgamento de Adolf Eichmann, um homem que estava sendo acusado por crimes em que não agiu sozinho, não se tratava de um caso isolado. Tão pouco, Arendt precisava como que colocar entre parênteses a culpa e a responsabilidade do réu, das quais ele tentava se imiscuir, para desenvolver uma teoria que pudesse alertar o mundo para a grandeza da maldade na sociedade burocratizada que nivelava os homens por igual diante da importância primordial do cumprimento de tarefas a serviço do regime totalitarista. Ou seja, Arendt não precisava abdicar das análises de dados de realidade, como o caso das ações e comportamentos de Eichmann, para desenvolver suas reflexões e teorias críticas sócio-políticas.

 

Sofia Débora Levy é Psicóloga Clínica e Professora com Pós-Doutorado em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Doutora em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia, Mestre em Psicologia, Bacharel e Licenciada em Letras (Português-Hebraico) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).