Coloquio

Edición Nº31 - Julio 2015

Ed. Nº31: Judaísmo agridoce

Por Michel Schesinger

O judaísmo reflete a experiência humana. Assim como a vida apresenta complexidades, o judaísmo é uma religião que contempla a complexidade da vida. Na experiência humana, uma situação não é totalmente boa ou ruim ela é majoritariamente boa ou ruim. O mesmo acontece em relação ao judaísmo. O nosso calendário é marcado por ocasiões que são principalmente boas ou ruins, mas sempre complexas.
A circuncisão, por exemplo, comemora o milagre da vida e da saúde com um pouco de dor e sofrimento. Isto porque um nascimento é principalmente uma alegria, no entanto traz também uma serie de responsabilidades. Ampliar a família é principalmente bom, mas isto não significa que um novo membro esteja imune à inveja dos irmãos, noites mal dormidas dos pais, reestruturação financeira do núcleo familiar, preocupação com temas de saúde e segurança. Enfim, o nascimento é uma situação principalmente boa, mas com aspectos difíceis. O judaísmo com sua incrível sabedoria propõe um ritual, logo no oitavo dia, que denota a ponta de sofrimento que existe naquele mar de alegria.
 
Aparentemente, não existe pior momento para recordar a destruição dos Templos de Jerusalém do que uma cerimônia de casamento. No entanto, é justamente no ritual de união de duas pessoas que se amam que nossos sábios instituíram o costume de pisar em um copo para recordar uma das mais importantes tragédias do Povo Judeu. Todos que já passaram pela cerimônia de casamento sabem como os sentimentos antagônicos emergem com força neste importante momento da vida. Existe sempre um convidado importante que não poderá estar presente porque está brigado, tem um compromisso inadiável ou já faleceu. Casar-se é também uma renuncia. Abrimos mão da individualidade em prol de uma vida compartilhada. A convivência intensa tem sua beleza e seus desafios. A quebra do copo na cerimônia de casamento parece captar com sensibilidade os importantes obstáculos que precisam ser superados em qualquer relacionamento profundo.
 
As festas judaicas também refletem a sabedoria e a complexidade da nossa tradição. Em Pessach comemoramos a liberdade, lembrando com intensidade da escravidão. Está escrito na Hagadá que “em cada geração devemos nos sentir como se nós próprios tivéssemos saído do Egito”. Valorizamos a liberdade apenas quando desenvolvemos a capacidade de nos colocar, que seja por uma única noite no ano, no lugar daquele que conheceu a escravidão. Comemoramos a saída do Egito provando do pão da pobreza. Festejamos o êxodo com o gosto amargo do marór em nossas bocas. Expandimos nossa consciência restringindo nossa dieta e nos abstendo de qualquer alimento fermentado por oito dias. Mais uma vez o judaísmo nos convida a viver algo e seu oposto denotando a complexidade da vida humana.
 
Simchát Torá é o símbolo da felicidade judaica. Com uma imensa alegria, terminamos mais um ciclo anual de leitura da Torá e reiniciamos o próximo. Cantamos e dançamos envolta do pergaminho mais sagrado da nossa tradição. Apesar de toda esta festa, o trecho que lemos nos últimos versículos de Devarim descrevem a morte de Moisés. Na data que comemora a alegria de mais um ano de leitura pública da Torá, lemos a descrição dos últimos minutos de vida do personagem principal daquele livro. 
 
Purim é também uma festa extremamente feliz. Visitamos as sinagogas fantasiados, levamos nossas crianças para participarem da comemoração, trocamos pratos com alimentos (o mishloach manót), giramos os reco-recos. Enfim, Purim é a alegria por excelência. No entanto, um olhar mais atento na História de Esther nos revela a tristeza do tema da festa de Purim. Haman é um símbolo de milênios de perseguição e anti-semitismo. Sabemos que a vitória em Shushan, a capital do Império Persa, representou uma pequena conquista em uma longa história de Inquisição, Cruzadas e Holocausto. Nem por isto deixamos de comemorar Purim e, ao mesmo tempo, reler a história que não começou com o sentimento anti-judaico do ministro persa e não terminou com ele.
 
Também nos momento de tristeza, o judaísmo nos convida a olhar para as pequenas vitórias. O Iom Hashoá lembra a maior desgraça da História do nosso povo. Não por acaso, o dia escolhido para a lembrança do genocídio representa um ponta de orgulho e esperança durante os anos sombrios da Segunda Grande Guerra. O nome completo do dia que marca a lembrança do Holocausto é “Iom HaShoá VeHaGuevurá”, o Dia do Holocausto e do Heroísmo que nos remete ao início do Levante do Gueto de Varsóvia. O calendário judaico não nos convida a lembrar a barbárie nazista no dia em que ela começou e também não no dia que terminou. Lembramos a Shoá no dia que representa a esperança no meio do sofrimento, o orgulho que ainda existe na mais profunda humilhação. E assim somos convidados a olhar para nossa História de forma complexa e ver que nos dias mais difíceis também aconteceram vitórias que podem ter sido tímidas, mas nem por isto pouco significativas.
 
O Iom Kipur é um dia de reflexão. Quando refletimos, ficamos um pouco tristes e um pouco alegres. Temos esperança com desconfiança. Sentimos nostalgia e vontade se seguir em frente. Talvez este seja o dia do calendário judaico em que a complexidade da vida fica mais bem refletida. 
 
E no campo individual? Será que o falecimento de um familiar querido também pode representar alguma celebração? A resposta judaica é que sim. Assim nos ensina o Midrásh , uma passagem da sabedoria rabínica: “Quando um navio deixa o porto, ninguém sabe qual tempestade irá encontrar, quais obstáculos impedirão sua jornada. É quando o navio retorna em segurança, no final de sua jornada, que devemos celebrar. Da mesma forma, é justamente no final da jornada da vida, quando sabemos que ela foi bem vivida, que é chegado o momento de satisfação, paz e até celebração”. Mesmo durante a dor de uma despedida, o judaísmo nos convida a contemplar a beleza da complexidade da vida. A tradição nos ensina que existe uma ponta de celebração quando um familiar querido se despede depois de ter vivido uma jornada de realizações e conquistas.
 
Felizmente, o judaísmo não nos convida a ter um olhar monolítico em relação à vida. Nossa tradição religiosa não divide a existência humana em momentos artificiais de alegria e tristeza. O judaísmo é agridoce. A religião dos nossos patriarcas e matriarcas nos chama a atenção para a complexidade da vida. Por este motivo, o judaísmo pode ser tão sábio e relevante. Porque não cria uma esfera separada da experiência humana. Ao contrário disto, pinta com cores fortes o antagonismo que existe em cada uma de nossas vivencias.